quinta-feira, 7 de maio de 2009

Decisão MP: Perdão da Dívida ISS UNIMED

25ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE NATAL
DEFESA DO PATRIMÔNIO PÚBLICO

Distribuição nº 060/00
Representantes: Vereadores Luiz Carlos e George Câmara

PROMOÇÃO DE ARQUIVAMENTO

O presente procedimento foi distribuído por representação subscrita pelos vereadores acima nominados, que solicitaram providência em face da participação de quatro vereadores na votação da Mensagem n.017/2009, que alterou Lei n. 3.882/89, tendo em vista que os mesmos, sendo três deles cooperados da UNIMED, os vereadores ENILDO ALVES, FRANKLIN CAPISTRANO e ALBERT DICKSON, e um deles, não identificado, filho da cooperada NILMA RODRIGUES, estariam impedidos de participar da respectiva votação, nos termos previstos no Regimento interno da Câmara de Vereadores, uma vez que a referida cooperativa seria beneficiada com a matéria legislativa aprovada.

O artigo 186 do Regimento Interno da Câmara de Vereadores dispõe que o vereador poderá escusar-se de tomar parte da votação, declarando simplesmente “abstenção” ao responder a chamada, quando: I – houver interesse pessoal; II – tratar-se de assunto em causa própria; III – por qualquer motivo de razão ética ou moral.

Primeiramente é de ser consignado que o Supremo Tribunal Federal firmou jurisprudência no sentido de que “a interpretação e a aplicação do Regimento da Câmara dos Deputados constituem matéria interna corporis, insuscetível de apreciação pelo Poder Judiciário” (MS Agr 26062), ressalvadas as hipóteses em que “haja violação a direitos assegurados pela Constituição” (MS 26915).

Dessa forma, tenho que, a princípio, a norma regimental invocada pelos representantes constitui matéria interna corporis, cuja interpretação e aplicação cabe exclusivamente à própria Câmara de Vereadores.

Contudo, na esteira da exceção admitida pelo Supremo Tribunal Federal, é possível vislumbrar que a norma regimental encontra respaldo nos princípios constitucionais da moralidade e impessoalidade, o que poderia então ensejar o controle jurisdicional dos atos praticados desconforme o regimento.

Tenho que as regras de impedimento ou suspeição previstas no artigo 186 do Regimento Interno da Câmara de Vereadores devem ser interpretadas com reserva, em face da natureza eminentemente política do ato legislativo, sendo da sua essência a discricionariedade.

Diferentemente de outras atividades estatais, como a função jurisdicional ou a intervenção do Ministério Público, que são marcadas pela incondicional imparcialidade dos agentes públicos, tal predicativo não se aplica em se tratando de ato legislativo, pois a manifestação de vontade do parlamentar é decorrente de íntima convicção, estando subordinada a todo e qualquer tipo de interferência externa lícita, impregnada de subjetividade e alimentada por fatores ideológicos, culturais, sociais, econômicos, religiosos etc.

Em decorrência dessas peculiariedades da atividade legislativa, a definição do conceito de “interesse pessoal”, capaz de caracterizar o impedimento de um parlamentar, deve seguir critérios extremamente restritivos, sob pena de ser tolhida a liberdade que é típica do exercício da função.

É que a interpretação ampliativa dos casos de impedimentos e suspeição do legislador levaria à sua incompatibilidade com diversas situações rotineiramente verificadas no exercício da função legislativa, seja em decorrência do próprio caráter abstrato das normas, pois quase sempre os parlamentares também são destinatários da disciplina legislativa por eles aprovada, ou então até mesmo em algumas situações concretas, como a fixação dos próprios subsídios, em que há interesse exclusivo dos parlamentares e de mais ninguém. Por óbvio que, não obstante a evidente presença do interesse pessoal nessas hipóteses, o parlamentar não estará impedido de participar da respectiva votação.

Penso que a regra de impedimento sob análise deve ficar limitada às hipóteses de matéria legislativa de efeito concreto, que se assemelha a atos administrativos.

Estabelecido este parâmetro de interpretação e confrontando-o com o caso aqui tratado, verifico que, em linhas gerais, a matéria legislativa objeto da Mensagem n. 017/2009 tem natureza absolutamente abstrata, na medida em que disciplina a forma de cobrança do ISS nos serviços de assistência médica, quando fornecidos por meio de cooperativa.

Embora a UNIMED tenha sido contemplada pela modificação legislativa, é fato que não foi a única beneficiária, já que outras cooperativas, já existentes ou que venham a ser constituídas, também estão acobertadas pela norma.

Porém, o artigo 2º. do projeto de lei, que prevê a retrotividade dos efeitos da modificação legislativa ao dia 1º. de janeiro de 1991, este sim, quando analisado no máximo da sua extensão, é dedicado exclusivamente à UNIMED, embora outras cooperativas também possam ser parcialmente beneficiadas por esta retroação.

Chega-se então ao seguinte ponto: havendo participado da votação do projeto de lei que, dentre outras matérias de caráter abstrato, concedeu benefício fiscal que favorece exclusivamente a UNIMED, os três vereadores que dela são cooperados e um outro que é filho de uma cooperada estariam impedidos de exercer a função legislativa?

Primeiramente é de ser consignado que o benefício fiscal concedido à UNIMED não proporciona, diretamente, qualquer benefício aos vereadores.

Interesse indireto é claro que há, pois a saúde financeira da UNIMED efetivamente é do interesse dos vereadores alegadamente impedidos. Ocorre que o equilíbrio econômico da cooperativa também é, por outras razões, do interesse de todos os usuários dos seus serviços, seja porque a sua liquidação deixaria milhares de pessoas desassistidas, ou então porque o custo da incidência da carga tributária seria certamente repassado para os usuários. Nessa linha de raciocínio, então os vereadores que fossem clientes da UNIMED também estariam impedidos. Inclua-se ainda no universo de interessados na higidez financeira da UNIMED todos os seus empregados e fornecedores, compreendendo hospitais, clínicas etc.

Por outro lado, sabe-se que a UNIMED tem algumas centenas de cooperados, quiçá milhares, sendo insignificante a representatividade dos quatros vereadores quando considerados isoladamente em face do quadro de filiados.

Tenho que a situação de cooperado, titular de cotas da cooperativa, assemelha-se à condição de acionista minoritário de uma empresa constituída sob a forma de sociedade anônima, em que o universo de acionistas, à semelhança do universo de cooperados, caracteriza uma relação cooperado/cooperativa ou acionista/empresa totalmente impessoal, que desautoriza qualquer possibilidade de vinculação personalística, o que é significativamente diferente do caso de sociedades empresarias de responsabilidade limita.

Deste modo, penso que, abstratamente falando, o “interesse pessoal” capaz de caracterizar o impedimento ou suspeição do vereador, afastando-o compulsoriamente da votação, deve ser limitado a situações de normas de efeitos concretos em que o interesse pessoal possa ser direta e objetivamente demonstrado, como seria o caso, por exemplo, de norma dessa natureza cujo destinatário, exclusivamente ou dentro de um universo reduzido de beneficiários, seja parente do vereador em grau que caracterize a prática de nepotismo, além de outras hipóteses, que devem ser analisadas casualmente.

Ressalvo, porém, a hipotética situação em que vereadores indiretamente interessados na matéria legislativa tenham agido por propósitos escusos, como o recebimento de vantagens ilícitas, ou então que proporcionem benefícios absurdos em favor da cooperativa, revelando uma nítida relação de promiscuidade entre o vereador e a entidade.

Neste aspecto, voltando a atenção para o caso aqui tratado, é preciso analisar o mérito da alteração legislativa, para concluir que a nova disciplina logrou estipular parâmetro razoável de tributação. Em reforço deste arremate, veja-se que, nos termos da cópia do parecer acostado aos presentes autos, o Ministério Público já havia se manifestado no Processo n. 9.307/98 (7ª. Vara da Fazenda Pública – UNIMED x Município de Natal – Ação Declaratória de Inexistência de relação Jurídica tributária), no qual a UNIMED pleiteava isenção total do pagamento de ISS, tendo o ilustre Promotor de Justiça opinado pela inexigibilidade de débito decorrente da cobrança de ISS “sobre as atividades desenvolvidas (...), por se tratar de hipótese de não-incidência tributária”, enquanto que, em sentido diverso, a disciplina legislativa em debate estabeleceu uma nova base de cálculo do tributo, longe de conceder sua isenção.

Assim, tenho que não restou configurado o “interesse pessoal” de que trata do Regimento Interno da Câmara de Vereadores.

De qualquer modo, cabe ainda aludir ao precedente do Supremo Tribunal Federal formado no julgamento do MS 21.623, em que o ex-Presidente Fernando Collor buscava obter tutela jurisdicional para afastar do julgamento do processo de impeachment senadores que, na sua ótica, seriam impedidos ou suspeitos, nos mesmos moldes aplicados aos magistrados.

Concluiu a Suprema Corte que as regras de suspeição e impedimento típicas dos magistrados não poderiam ser aplicadas aos parlamentares, sob os seguintes fundamentos, que foram extraídos dos votos dos Ministros Carlos Veloso e Octávio Galotti:

1) “A participação dos Senadores como juízes no processo por crime de responsabilidade do Presidente da República, por isso mesmo, é conatural ao mandato representativo de que se acham investidos, o que leva a reduzir as incompatibilidades, quando existam, a hipóteses excepcionalíssimas”;

2) A tese da suspeição e do impedimento embaraçaria “o exercício pleno do mandato parlamentar, impedindo a manifestação de membros do Congresso Nacional em torno de assunto de extrema relevância na Política Nacional” ou inviabilizaria “o exercício pelo Poder Legislativo de competência que lhe é conferida diretamente pela Constituição da república”;

3) “A disciplina das suspeições e impedimentos, segundo as leis processuais comuns (civis ou penais), pressupõe um sistema regular de substituições (normalmente a cargo de Juízes de grau inferior), que, de modo algum, encontra paralelo nas Casas do Parlamento”, de modo que transplantar as regras de impedimento e suspeição para o “Senado (como para a Câmara), seria paralisar-lhe a atuação”, já que não existe previsão constitucional de convocação de suplentes para esta situação.

Diante do exposto, promovo o arquivamento do presente procedimento, determinando sua remessa ao Conselho Superior do Ministério Público, após a comunicação da presente deliberação aos vereadores representantes e representados e à UNIMED. Anotações de estilo no livro de registro e distribuição de procedimentos.


Natal (RN), 23 de abril de 2009


Giovanni Rosado Diógenes Paiva
Promotor de Justiça

Nenhum comentário: