De como o médico acaba sendo o principal entrave ao avanço da reforma psiquiátrica brasileira
A loucura ao longo da história da humanidade teve ligada a si diversas imagens, mitos e medos. Só a partir do século XVIII é que surge o conceito de doença mental e junto com ele o médico que cuidaria destes enfermos, o alienista. Philippe Pinel é quem pela primeira vez, vai separar os loucos dos detentos que até então eram excluídos juntos da sociedade, para então excluí-los em separado nos asilos.
No século XIX, o paradigma médico da loucura ganha força, e os esforços em descobrir suas origens e cura junto a criatividade humana geram os tratamento mais excêntricos como duchas, choques insulínicos, psicocirurgias. Ao longo de todo este século e adentrando o próximo, o modelo asilar, baseado na exclusão e castração mental do doente, continuará hegemônico. Em meados do século XX é que as contradições deste modelo começam a ser levantadas, e alternativas propostas.
No Brasil, o movimento da reforma psiquiátrica corre em paralelo ao da reforma sanitária, agregando usuários, familiares, trabalhadores e até gestores a favor da causa de uma assistência à saúde mental baseada na reinserção social, na quebra de preconceitos e no desenvolvimento da autonomia do sujeito. Só em 2001 isto é consolidado legalmente na lei Paulo Delgado, que dita as diretrizes para as políticas nacionais de saúde mental. Nesta lei estão previstos os serviços substitutivos do hospital psiquiátrico, como Centro de Atenção Psicossocial ( CAPS), Hospitais-dia, residências terapêuticas, além da progressiva redução dos leitos em hospitais psiquiátricos.
No entanto, do papel à vida real há um longo caminho. Apesar do respaldo jurídico, a reforma psiquiátrica brasileira tem caminhado a passos lentos e de forma heterogênea pelo Brasil. Enquanto temos o caso de Campinas, onde não há mais manicômios, temos inúmeras cidades e estados em que assistência é quase que totalmente à custa dos hospitais psiquiátricos. E por que isso?
Um primeiro ponto a ser analisado é a questão de a quem não interessa o andamento da reforma. A classe médica em sua maioria é reticente a este processo por enxergar, de maneira míope, na proposta de assistência multidisciplinar uma perda de mercado para os psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais e outros tantos profissionais que foram incorporados a um território que antes era domínio exclusivo do psiquiatra. Portanto, para os psiquiatras muitas vezes é mais interessante continuar do jeito que sempre foi, mesmo que isso não seja terapêutico.
O segundo ponto, de certa forma conseqüência deste primeiro, é o conservadorismo da academia no ensino da psiquiatria. Em grande parte das escolas médicas o modelo assistencial que continua sendo passado é o do tradicional manicômio, com nossos professores ignorando solenemente as outras propostas de serviços assistenciais. Com isto temos a reprodução deste pensamento hegemônico de que o tratamento à doença mental é feito preferencialmente no hospital, excluindo o sujeito da convivência familiar e social. E assim, a reforma avança ainda menos, pela falta de médicos em sintonia com seus ideais e dispostos a trabalhar nesta nova perspectiva.
O terceiro ponto, talvez o mais nevrálgico, é a representação social construída por séculos em cima da loucura, que dificulta a aceitação destes novos modelos por parte não só dos profissionais, mas dos familiares, vizinhos e até dos próprios pacientes, afinal é sabido por todos que lugar de doido é no hospício. Daí o desafio hercúleo ao profissional de saúde mental de mudar toda uma cultura de estigmas e estereótipos que cercam a doença mental.
E qual o papel do movimento estudantil de medicina nisto tudo? Creio que até o momento que somos privados deste conhecimento podemos nos furtar da responsabilidade. Estamos alienados. Mas a partir do momento em que conhecemos e real situação em que vivem os supostos alienados, não podemos mais nos omitir. Temos que decidir de que lado ficaremos. Do lado de um modelo de assistência fracassado e desumano, que serve a interesses dos donos de grandes manicômios, que destrói a dignidade dos usuários, ou do lado destas pessoas que além de ter suas vidas muitas vezes dilaceradas por doenças que afetam o sentir, as emoções a razão, ainda sofrem toda uma série de preconceitos e violências, mas que podem, com a ajuda de um modelo de assistência que lhes preserve a autonomia e individualidade, ter uma vida plena e feliz, como cada um de nós. E então, como se lida coma saúde mental em sua cidade?
Ana Carolina Pieretti
Centro Acadêmico Nelson Chaves – UFRN
Henrique Gonçalves
Centro Acadêmico Nelson Chaves - UFRN
(Texto produzido para o Jornal da DENEM e para o Caderno de textos do EREM - Mossoró)
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