terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Movimento estudantil: a caça às bruxas

Muito se fala sobre a postura dos estudantes que fazem movimento estudantil. Culturalmente, devido aos 21 anos de ditadura militar, seguidos da década mais que perdida de 1990, arraigou-se uma concepção errônea sobre a atividade no inconsciente popular, trazendo conseqüências desagradáveis para nossa geração de militantes.
Diante da ameaça do crescimento de outras religiões durante a idade média, a igreja católica, de modo a manter a dominação ideológica sobre a sociedade, criou o mito das bruxas. Denominava-se bruxa toda aquela mulher suspeita de cultuar deuses que não os cristãos, sendo vistas, a partir de então, como a causa de todas as mazelas que acometiam a comunidade em que viviam, pois Deus castigava a todos por causa do culto “pagão” de alguns poucos.
A carga ideológica, a endemonização do não-cristão, o mito da bruxa criado pela igreja foi tão pesado que, em dado momento, não foi mais necessário que ela perseguisse aqueles que não cultuassem os deuses cristãos. A própria sociedade enraizou em seu inconsciente coletivo esse pensamento, perseguindo e levando às autoridades religiosas aquelas que eles suspeitavam de cultuar outros deuses, matando, com isso, milhares de inocentes e provocando verdadeiro genocídio cultural.
Toda boa vontade estava presente na sociedade medieval quando tentava se livrar de tais bruxas. Em sua inocente mentalidade, manipulada pela igreja, temerosa de ver seu poder ameaçado por outros credos, combateram fortemente aquelas pobres criaturas com a esperança de livrar de suas comunidades o mal que, aparentemente, advinha da existência delas. O problema é que, sem elas, as mazelas não desapareciam...
“Filho, só vou lhe dar um conselho. Não se meta com esse negócio de movimento estudantil. Se preocupe com seus estudos.” Meu pai não foi definitivamente o autor dessa frase, dita e redita por diversos pais pelo país afora. Sim nossos pais são vítimas e não têm culpa de darem esse tipo de conselho. Não foi a toa que a ditadura militar baniu do currículo regular as aulas de sociologia, filosofia e antropologia. Tais ciências, ministradas desde cedo, têm a capacidade criar uma consciência social crítica, uma preocupação por parte do indivíduo com a sociedade e a visualização de seu papel individual enquanto agente social. A ausência delas, no entanto, substituídas então por “Estudos Sociais” e “Moral e Cívica”, causaram na maioria de nossos pais uma modificação em sua consciência social, reiterou o conceito individualista de que “melhor mesmo é cuidar da minha vida”.
Pior que isso, a ditadura, ao enxergar o movimento estudantil como uma enorme pedra no seu caminho, tratou de realizar uma verdadeira caça às bruxas pós-moderna. Não se contentou em torná-lo ilegal, como também tratou de “endemonizar” no inconsciente popular o estudante que faz movimento estudantil. É praticamente unânime no senso comum que quem faz movimento estudantil não estuda, é vagabundo, é estudante frustrado, é revoltado etc, etc, numa falácia preconceituosa tão medieval quanto pensar que a existência de adoradores de deuses não cristãos era a causa das mazelas sociais. Pelo contrário, além de ser um instrumento de evolução da sociedade, o movimento estudantil é produtor de médicos diferenciais e mais qualificados, suprindo sérias deficiências existentes em nosso currículo.

I. O movimento estudantil e a formação de médicos diferenciais

Aquele estudante que não teve aulas das ciências sociais desde sua formação básica, formando-se, assim, nessa concepção individualista e desumana – uma vez que foge à natureza do ser humano, essencialmente social - obviamente não terá disposição para estudar sociologia e antropologia na faculdade, criando toda uma geração de profissionais individualistas e dificilmente humanizados.
Em virtude disso, o currículo médico de diversas escolas nem se quer tem tais disciplinas e, quando existem, elas são tão desprezadas por alunos e até pelos professores – formados desde cedo nessa perspectiva individualista – que se tornam um absoluto desprazer ao estudante. O professor finge que ensina uma sociologia “aplicada” a medicina e o aluno finge que desenvolve sua consciência social.
Preocupado com os currículos médicos e com a baixa qualidade dos profissionais formados, muitas vezes desumanos, o MEC lançou as diretrizes curriculares para os cursos de medicina de todo o país. Segundo tais diretrizes, os cursos e faculdades de medicina devem formar profissionais com as seguintes competências:
• Atenção à saúde: O médico recém-egresso deve estar apto a desempenhar atividades de promoção, prevenção, proteção e reabilitação em saúde.
• Tomada de decisões: O trabalho do médico deve estar fundamentado na capacidade de tomar decisões, visando uso apropriado, eficaz e custo-efetivo daquilo de que dispõe.
• Comunicação: O médico recém-egresso deve saber comunicar-se com os pacientes, com os profissionais de saúde e com o público em geral, o que envolve comunicação verbal e não verbal.
• Liderança: no trabalho multiprofissional, os profissionais de saúde devem estar aptos a exercer posições de liderança, sempre tendo em vista o bem-estar da comunidade. A liderança envolve compromisso, responsabilidade, empatia, habilidade para tomar decisões, comunicação e gerenciamento de forma efetiva e eficaz.
• Administração e gerenciamento: o profissional deve estar apto a tomar iniciativa, realizar gerenciamento e administração daquilo que dispõe, do mesmo modo que deve esta apto a ser empreendedor, gestor, empregador ou liderança na equipe de saúde.
• Educação permanente: os profissionais devem ser capazes de aprender continuamente, buscando o conhecimento de que necessitam.


Em síntese, é isso que a sociedade espera do profissional médico. Devemos iniciar o desenvolvimento dessas habilidades na universidade, saindo dela com uma base mínima necessária para o bom exercício da medicina. [Ou você queria que rapadura fosse doce e mole?!].
Pois bem, observemos o currículo de nossa escola e meditemos: que disciplinas de nosso curso nos ajuda a desenvolver as habilidades de:

*Tomada de decisões: [ Tomamos decisões! Letra a), b), c) ou d). Cuidado, se errar, fica de recuperação e mandamos um bilhetinho pros pais!]
*Comunicação: [Nos comunicamos de modo avançadíssimo! “Entendeu turma?” Nem respondemos! Nos ensinam telepatia no curso médico!]
*Liderança: [Desenvolvemos nossa capacidade de liderança. “Galera, vou fazer a votação da camisa da turma. Azul-bebê, ou azul-celeste?!”]
*Administração e gerenciamento: ]“E agora, uso esse dinheiro pra lanchar ou pra bater xérox do medcurso?”]

E não podia ser diferente. Aos nossos professores não foram ensinadas tais habilidades, como queremos que eles nos ensinem? Assim como não podemos culpar nossos pais por fazerem caça as bruxas ao movimento estudantil, não podemos culpar nossos professores por não nos ensinarem uma medicina mais humana e holística. E que alternativa temos pra nos formarmos médicos diferenciados? Diversas. O mais importante é que busquemos por fora aquilo que nosso currículo não nos oferece, formando-nos enquanto profissionais diferenciais.
E uma das alternativas que encontramos para isso é o movimento estudantil. Sim, os CA´s e DA´s tem papel importantíssimo na formação de médicos diferenciais, Além de exercer uma função social histórica, o movimento estudantil definitivamente nos ajuda a desenvolver nossas habilidades de Lideranças, Comunicação, Administração e Gerenciamento, Tomada de Decisões e também da Educação Continuada pois, uma vez que tomamos consciência que o curso médico por si só não nos formará médicos de qualidade, passamos a correr atrás de nosso próprio conhecimento, quebrando com a postura passiva que nos impõe a sala de aula.
Existem, é verdade, exceções: há aqueles estudantes que vêem no movimento estudantil um escapismo, uma fuga da realidade, deixando de fato de estudar, muitas vezes numa ação inconsciente, pra fazer atividades do CA; mas maior ainda é o número daqueles que deixam de estudar pra assistir ao Big Brother. Por isso, é tão justo generalizar que quem faz movimento estudantil é vagabundo quanto afirmar que todo árabe é mulçumano e que todo mulçumano é terrorista.

[PTC]

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