quarta-feira, 29 de outubro de 2008

A medicina do Mim e a Medicina do Outro


A partir do momento que passamos a afirmar por ai que vamos fazer vestibular pra medicina, é praticamente unânime que advenham duas perguntas mais do que pragmáticas de nosso interlocutor: “Por que você escolheu medicina?” e “Pretende se especializar em quê?” Nada mais natural. Elas nada mais são do que reflexo da atual incoerência filosófica de nossa sociedade.

Não existe profissão mais humana, nem muito menos mais invasiva do que a medicina. Mergulhamos no mais íntimo do ser humano e podemos ser para ele veículo de “morte” ou de “vida”. Talvez por isso haja certa aura de “sacralidade” inconsciente ao redor do estetoscópio. É ao médico que entregamos nossas fraquezas mais íntimas, nossas angústias e dores, confiando que aquele homem de branco, seguramente veículo da saúde, nos aliviará a dor, nos apaziguará o espírito.

Torna-se, assim, inquestionável a grandeza da profissão e natural o sentimento de que tão grande responsabilidade não seja assumida por um irresponsável. Pois bem. Já experimentou responder à primeira pergunta, de porque escolheu a medicina, com a resposta de que “por dinheiro, status e estabilidade social”? Experimenta. Depois diz que é brincadeira. Rápido. Espera-se ouvir que aquele que deseja fazer medicina tem os mais nobres sentimentos altruísticos, as mais altas virtudes platônicas, tendo decidido dedicar toda a sua vida ao próximo, esquecendo-se, como bem disse Esculápio, de si em nome do outro.

E não há nada de absurdo que se espere isso do médico. Diante de tão nobre papel, que há de incoerente em se desejar um nobre encarregado? Mas a incoerência é logo subseqüente. “Médico de quê?” Já experimentou responder à segunda pergunta com Psiquiatria ou Medicina da Família? Experimenta. Mas ai sim é melhor dizer que é brincadeira e rápido, ou vovó e titia podem te assassinar. “Filho... esse negócio dá dinheiro? Trabalhar com louco? Trabalhar no SUS? Dá pra ter uns 3 PSF´s ao mesmo tempo? Faça cardiologia, ou cirurgia plástica, que é mais futuro! E você ainda estica minhas pelancas de graça como cobaia...”

Ora! Toda semana escutamos alguém reclamar de um médico desumano e sem coração que mal olhou pra cara do paciente! E quando dizemos pra essas pessoas que vamos fazer medicina social, elas proíbem suas filhas de se aproximarem de nós! O que a sociedade quer então? Tenho certeza de que, se formos ouvi-la, não sairemos do lugar, pois ela sabe bem o que deseja, mas não sabe cultivar isso no estudante de medicina; pelo contrário, planta nele o joio da medicina por dinheiro, esquecendo-se de que ela mesma o colherá amanhã. A cultura do médico mais humano é desejada apenas no plano das idéias, mas rechaçada na vida real.

Nós, no entanto, não podemos nos dar ao luxo de se perder na incoerência filosófica da sociedade, pois somos nós os protagonistas da peça. Nós construímos nossa formação. Serei médico de quem? De mim, ou do outro? Isso não é uma apologia à Medicina Social. Não é crime fazer medicina para si, mas que nos decidamos de que lado sambamos.

É possível sim fazer uma medicina mais humana, para o outro e viver muito bem; o problema é que não se troca de Mercedes todo ano.

E ai, Oh discípulo de Hipócrates e Esculápio, o luxo da medicina do mim,ou a nobreza da medicina do outro?

7 comentários:

Unknown disse...

Gostaria de saber quem escreveu o texto... eu adorei. Já experimentei dar resposta parecida as ditas no texto apenas pra ver a reação da outra pessoa. A primeira pergunta uma vez eu respondi "porque vou ter a garantia de um emprego qdo me formar" e realmente foi decepcionante pr'akela pessoa q me ouviu, mas em seguida eu acrescentei outras coisas pra não frustrá-la.
A segunda pergunta já respondi "Saúde da Família" a decepção tb foi grande... e veio logo a pergunta "o q esse especialista faz? Dá dinheiro?" hehehe

Raniere

Unknown disse...

Deixo outra pergunta:
O que seria da medicina sem o especialista?


Todos são importantes,
tanto o especialista quanto o generalista.

Anônimo disse...

eu acho que todos, especialistas ou nao, temos q ser generalistas. E ser generalista nao é ser médico de familia (que por sua vez, é um especialista). É saber um pouco de tudo e saber especialmente aplicar um pouco de tudo.
Nao se bitolar em decorar o HLA-B27 da espondilite, mas saber caracterizar uma dor inflamatoria de uma mecanica, ainda que nao seja reumatologista, fazer uma sutura ainda que nao cirurgiao, um parto ainda q nao GO, um diagnostico da familia, ainda q nao médico de familia.
Realmente, a sociedade tem uma visao discrepante do q diz desejar de um medico, mas vejo a propria classe médica legitimar isso constantemente.

Unknown disse...

Show o texto!

Faz pensar!!

Flw
Góis

CANECA disse...

muito bom o texto!!! parabéns pra quem escreveu!!
Realemtne precisamos de médicos especialista, subespecialistas e generalistas, mas acho q todos precisam ter uma noção de generalista... agora, com certeza, independentemente d tudo isso,precisamos começar a fazer uma medicina mais humana, socialmente responsável e com respeito para com o ser humano. Obviamente q todos queremos ganhar um salario digno, mas daí trabalhar prioritariamente pra ganhar dinheiro é outra historia.... precisamos repensar o papel do médico na sociedade e q medico queremos formar...

Saliciano

Unknown disse...

em nenhum momento o texto falou quem era importante, especialista ou generalista, apenas mostrou a incoerencia das questoes impostas pelas pessoas a respeito das atitudes dos médicos e sobre oq elas pensam da medicina. é mais que óbvio que tanto o especialista qt o generalista são de extrema importancia dentro do sistema de saude, seja ele público ou privado.
p.s.: em resposta ao que foi escrito pela segunda pessoa q comentou

augusto - 3° período

Ana Pris disse...

Palmas!!!! ótimo texto!!! Acho que o autor deveria fazer a aula inaugural da disciplina de bioética. Realmente vimos e ouvimos isso todos os dias, e com a impressão de que essas mentalidades nunca vão mudar, de que essas pessoas nunca vão amadurecer... mas é assim mesmo, infelizmente não se pode exigir que os outros pensem como nós pensamos. É uma pena a impressao de falar e ninguém ouvir. Aliás já ouvi um colega dizer ao professor, perante toda a turma, que faz medicina por status. Pelo menos foi sincero... A outra disse que fazia pq queria ajudar os outros; resultado: ouviu a pergunta de um colega: pq não fez enfermagem? E foi ridicularizada por grande parte da turma. Deprimente e vergonhoso. São os filhos de uma sociedade materialista, consumista e que valoriza a imagem e ostentação. Parabéns por lutar contra essa correnteza.

Ana Priscila